"Tinha os filhos, tinha o marido, tinha a sua vida ligeira e agradável (...), os rituais de todos os dias, sem angústias, sem segredos inconfessáveis, sem medo, sem terror, sem aquele sufoco que agora lhe devorava o peito. Se ele não viesse, tudo não teria passado de um devaneio de uma noite de Verão, de um breve momento em que perdera a lucidez num beijo roubado na escada de um hotel. Mas nada mais; não haveria este quarto de hotel, esta traição planeada, este encontro de sombras, trancada como se se escondesse de si própria e do mundo que escutava para além da janela. Não teria de sofrer esse pesadelo que já adivinhava, de ter uma cara para o dia e outra para a noite, uma cara para os outros, todos os outros, e outra para o fundo de si mesma. De manhã, sairia dali a sorrir para o dia, intacta, fiel, igual a si mesma. Ao mais fundo de si mesma. Mas se ele não viesse... se ele não viesse, ela ficaria ali deitada a noite toda como se tivesse sido violada e depois abandonada, uma peça de roupa usada e deitada fora, um acontecimento fortuito, um equívoco, um mal-entendido. Sentir-se-ia traidora atraiçoada, repudiada pelo próprio objecto da sua traição."
Miguel Sousa Tavares, in EQUADOR
4 comentários:
Também ando a ler o Equador neste momento!
E ia colocar um post sobre isso no Caracóis da Marina... Que giro!
Melhor, li a passagem que transcreveste ainda ontem!
Que sintonia!! :)
Mesmo!
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