segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Passagens

"Consideremos uma palavra que se refere a um objecto: guarda-chuva, por exemplo. Quando digo a palavra «guarda-chuva», vemos o objecto na mente. Vemos uma espécie de bengala, com varas de metal que se dobram e que formam uma armação para um tecido impermeável que, quando aberto, nos protege da chuva. Este último pormenor é importante. O guarda-chuva não é apenas uma coisa, é uma coisa que exerce uma função; por outras palavras, exprime a vontade do homem. Quando paramos para pensar nisto, verificamos que todos os objectos são semelhantes ao guarda-chuva, pois também servem uma função. Um lápis serve para escrever, um sapato para o calçarmos, um automóvel para o guiarmos. E o que eu pergunto agora é o seguinte: o que acontece quando uma coisa deixa de cumprir a sua função? Ainda é a mesma coisa ou transformou-se numa coisa diferente? Quando arrancamos o tecido de um guarda-chuva, o guarda-chuva ainda é um guarda-chuva? Abrimos a armação, pomo-la sobre a cabeça e saímos para a chuva e ficamos completamente encharcados. Será que ainda podemos chamar guarda-chuva àquele objecto? De uma maneira geral, é isso o que as pessoas fazem. Quando muito, dirão que o guarda-chuva está estragado. Mas para mim isto é um erro grave, é a causa de todos os nossos problemas. Como já não pode desempenhar a sua função, o guarda-chuva deixou de ser um guarda-chuva. Pode parecer-se ainda com um guarda-chuva, pode ter sido um guarda-chuva, mas agora transformou-se noutra coisa. No entanto, a palavra empregue é a mesma. Por conseguinte, já não consegue exprimir o que é o objecto. É imprecisa, é falsa, esconde a coisa que deveria revelar. E se nem sequer conseguimos nomear um objecto comum do dia-a-dia que temos nas mãos, como é que podemos esperar falar das coisas que verdadeiramente nos preocupam? Continuaremos sempre perdidos, a não ser que comecemos a incorporar a noção de mudança nas palavras que usamos."

Paul Auster in Cidade de Vidro - A Trilogia de Nova Iorque

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