"Se tivesse uma câmara, Mário gostaria de fotografar os rostos das pessoas que, ao sábado, passeiam na cidade e daquelas que vivem na cidade para que os outros reparem nelas. Fotografá-las-ia decerto, se pudesse, se tal fosse possível, um instante antes e um instante depois de terem dado pela presença dele, caminhando na sua forma diversa de caminhar. Mas Mário não tem uma máquina fotográfica e, mesmo que tivesse, talvez não lhe fosse possível fazer o que deseja: as pessoas apercebem-se de que Mário se aproxima muito antes de ele estar suficientemente perto para fotografar os rostos delas. Só se Mário pudesse ser, ao mesmo tempo, ele próprio e um outro: um fotógrafo invisível que o precedesse. Isto, porém, é impossível. Apenas as palavras tornam possível tal efabulação. Imagine-se alguém ser dois! Isso não pode ser senão invenção de poetas, escritores e outros mentirosos." - Verdade ou Mentira?
"Presumo, pois, que o homem da bicicleta musical seja um velho feliz da felicidade das pequenas coisas e dos minúsculos gestos, dos subtis prazeres; um homem que se empenha em escandalizar suavemente o mundo com a música da felicidade dele. Não creio que seja viúvo, o homem. Prefiro imaginá-lo a envelhecer devagar ao lado de uma velhinha igualmente feliz, de cabeça nevada, que o recebe com um sorriso quando ele regressa das suas manhãs ciclísticas na Foz; com um sorriso e o perfume feliz de um naco de carne a acabar de crestar no forno. Ele sempre insiste para que ela saia também, para que compre uma bicicleta e venha pedalar com ele nas manhãs de domingo, para cantarolarem juntos, mas a felicidade dela reside em outras coisas: despertar com o cantar do galo, ver nascer o dia na janela da casa térrea onde moram os dois, tratar do limoeiro do quintal, colher um ramo de flores frescas com que há-de dar cor à mesa do almoço e principiar a preparar a refeição, descascando amorosamente pequenas batatas, temperando a carne com louro, alho e vinho branco. Tuso sem pressas e sem tempo, com os gestos que têm as velhas que são felizes e não correm para lado nenhum nem fogem de coisa alguma." - O homem da bicicleta musical
In "O profundo silêncio das manhãs de domingo",
de Manuel Jorge Marmelo
Um pequeno livro de contos
delicioso,
utópico,
sonhador,
irrealista até,
muito bonito.
Um comentário:
Vou procurá-lo na Fnac...
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